A impressora 3D e a cidade

É fascinante estudar o processo de invenção, desenvolvimento, generalização do uso e obsolescência de novos objetos tecnológicos. Desde que a ciência começou a se agregar às técnicas o engenho humano se tornou uma poderosa força transformadora dos meios de produção e da geografia do planeta e da cidade. A Revolução Industrial e a Revolução Tecnológica acabaram por induzir ao vertiginoso crescimento das cidades. A indústria, concentrando capital e mão de obra, assumiu um papel central como lugar de recepção de uma infinidade de insumos e matérias primas e de distribuição quase sem limites da multiplicidade de objetos por ela criados. Passou assim a ser associada à dinâmica da aglomeração e da urbanização. O advento dos microprocessadores, da informática e da Internet favoreceu desconcentração da produção em vários lugares. A globalização consagrou a fragmentação planetária da produção dos objetos industriais. Para citar somente um exemplo, a produção de aviões da Boeing envolve hoje cerca de 7.500 fornecedores de uma enorme multiplicidade de peças em 73 países. Em vários ramos da atividade econômica, enquanto umas cidades criam o projeto e o design, outras se ocupam de executá-los.

O novo objeto industrial que, uma vez mais, pode provocar mudança na geografia da produção e da cidade é a impressora 3D. Um artigo de Rob Walker, publicado em fevereiro de 2016 na revista Land Lines, relata a oferta crescente de impressoras 3D em bibliotecas públicas das cidades americanas. Walker menciona a existência de um número superior a 250 bibliotecas públicas do país que já oferecem pelo menos uma impressora 3D em espaços programados para a fabricação de objetos no local. E as bibliotecas públicas vêm mesmo assumindo um papel atualizado em relação à expectativa antes restrita à consulta do objeto livro que sempre lhes reservaram os governos e os investimentos públicos nas cidades.

Mas, as bibliotecas públicas podem estar apenas cumprindo um papel difusor de uma inovação que as impressoras 3D podem induzir em termos de mudança na geografia da produção. Objetos que, com a globalização, passaram a ser fabricados muitas vezes a distâncias continentais do seu local de aquisição e de uso, podem agora ser autoproduzidos de forma desconcentrada, prontos para uso, pelo seu próprio idealizador ou, de posse do projeto, por qualquer cidadão.

O formato que essas máquinas vêm assumindo é o das conhecidas multifuncionais. Suas principais limitações hoje, dependendo dos métodos disponíveis, são a adequação a poucas (mas em número crescente de) matérias primas, a velocidade lenta do processo de fabricação, a precisão insuficiente exigida para alguns objetos e a baixa escala da produção. Isso, aliado ao custo atual ainda elevado, restringe hoje esse invento à fabricação de protótipos, séries limitadas, peças únicas ou réplicas de algum objeto de design conhecido. Mas, é mais fácil aperfeiçoar do que inventar.

MX3D / www.globe.erau.edu

É crescente o interesse de criadores e do setor privado pela novidade que, em vez das grandes fábricas para a produção em massa, poderia se servir de unidades urbanas descentralizadas junto a mercados segmentados que seriam atendidos até um padrão personalizado. Pelo mundo, o comércio já oferece à venda alguns objetos fabricados nas próprias lojas. Os serviços de maquetes já utilizam largamente o 3D e na Holanda, o escritório de arquitetura DUS trabalha para aperfeiçoar o uso de grandes impressoras 3D na fabricação direta de componentes construtivos nos próprios canteiros de obras. E, de fato, uma mudança nada desprezível é a possibilidade de produzir peças e componentes diretamente no seu local de montagem, refazendo-se a cadeia logística da linha de produção. Na administração portuária se aposta na utilização do potencial dessa nova tecnologia para a manufatura de peças de suprimento aos navios. No mundo da moda, a impressora 3D se tornou um recurso de criação e coleções inteiras são produzidas para desfiles nos quais as roupas são impressas em 3D. Próteses de membros e órgãos são fabricadas como peças de reposição para o corpo humano.

Isso quer dizer que a matéria prima, antes levada a uma multiplicidade de unidades industriais concentradoras da fabricação em larga escala de muitos objetos, poderia ser demandada de forma pulverizada aonde haja um mercado segmentado, um auto produtor ativo ou uma construção a ser erguida. Outra possibilidade seria o surgimento de unidades ou prédios próprios para abrigar múltiplos serviços de impressão 3D, atualizando o velho padrão industrial das fábricas agora em micro localizações preferenciais em áreas comerciais.

O desenvolvimento da impressora 3D doméstica, como o eletrodoméstico que permite hoje a fabricação mais fácil de pães e bolos caseiros na cozinhas das casas, pode ainda estar distante. Mas, assim como ocorreu com a longa generalização de tantos inventos, como o telefone celular e o microcomputador, que revolucionou a produção dos serviços de escritório, dentro de algumas poucas décadas poderia se esperar a oferta das impressoras 3D para uso individual. A unidade domiciliar, já chamada à geração de energia, à reciclagem de dejetos, à cultura de alimentos e ao abrigo do trabalho remoto em rede, afirmaria sua auto suficiência com a micro fabricação de objetos.

Se isso for verdade, as bibliotecas americanas estariam cumprindo hoje, com a oferta pública pioneira das impressoras 3D, um papel semelhante ao que cumpriram as LAN (Local Area Network) Houses e os Cyber Cafés nos bairros. Se essa nova geografia vai vingar e, em alguma medida, competir com o modelo atual da produção de objetos, o tempo dirá. E a cidade se verá diante de novas mudanças na sua organização e dinâmica interna, induzidas pelo modo de produzir objetos à luz do controle público ou na penumbra da criminalidade. Assim, uma vez mais, nos veremos diante do desafio de regular o engenho humano para o bem.


Publicado em Blog do autor em 17 de abril de 2016