
Carlos Nelson Ferreira dos Santos é um daqueles casos raros que surgem em meio a contradições e becos aparentemente sem saída no processo de evolução do conhecimento. Dono de uma sólida formação intelectual e pensador irreverente, transitou por diversas áreas do saber.
Desmistificou o funcionalismo positivista do racionalismo que grassava no Brasil, mostrando resultados desoladores nas cidades. Colocou sua prancheta a serviço da urbanização de favelas, quando o assunto era caso de polícia (e de uma certa política), apontando o caminho de uma prática engajada e transformadora. Aliou seu ofício de desenhador de espaços a uma profunda reflexão sobre as formações urbanas brasileiras, vendo-as como expressões espaciais, mas, ao mesmo tempo, fatores de superação das condições sociais e de vida nas cidades. Foi preciso, aliás, que respeitáveis teóricos, sobretudo europeus, viessem ao Brasil para legitimar o que o nosso pensador tupiniquim já havia dito alguns anos antes.
Manteve-se acima dos dilemas simplistas, do tipo socialismo x capitalismo, esquerda x direita e outras reduções mascaradoras. Em resposta ao intenso debate de época sobre a produção da cidade, ofereceu uma construção teórica inovadora sobre o consumo da cidade, na qual o cidadão era tomado como agente antropofágico de uma caricatura diabólica do próprio capitalismo. Trabalhou por espaços e práticas democráticas. Observador astuto do cenário urbano brasileiro, era capaz de gestos ousados, traduzindo fato novos do cotidiano em ações intelectuais imediatas e consequentes. Era, portanto, um prático-teórico, conforme sua própria definição.
Na chefia do Centro de Estudos e Pesquisas Urbanas do IBAM, decodificou com clareza e brilhantismo os complicados arranjos do mosaico urbano, executando e orientando estudos, pesquisas, planos e consultorias diretas para diversas cidades do Brasil e do exterior. Seus trabalhos cobrem um amplo leque de temas de agudo interesse para quem quer que pense, administre e viva as cidades: urbanismo, morfologia e desenho urbano, habitação, favelas, periferias, metropolização. Apaixonado pelo Rio de Janeiro, elaborou um guia culto e irreverente sobre a história, as belezas e os prazeres da cidade.
Por tudo isso, Carlos Nelson serviu de farol para uma ampla corrente profissional que, agora longe da sua presença instigante e enriquecedora, dispõe de um precioso espólio intelectual ainda a ser melhor explorado e difundido.
Depoimento póstumo sobre Carlos Nelson Ferreira dos Santos publicado originalmente, sob outro título, na revista Projeto, nº 123, em julho de 1989, por solicitação dos editores ao autor.
Republicado, por ocasião dos 20 anos do falecimento de Carlos Nelson, na Revista de Administração Municipal MUNICIPIOS, Rio de Janeiro: IBAM, Ano 54, nº 271, jul./set. 2009, p. 21
