“O navio é um lugar sem lugar…
O navio tem sido o grande escape da imaginação…
O navio é a heterotopia por excelência.”
Assim Michel Foucault fez alusão àqueles lugares que parecem constituir representações do desejo humano de expressar ou experimentar o mundo ao seu modo ou ainda de confrontá-lo com alternativas não alinhadas ao padrão usual ou aceito socialmente. O conceito resvala fácil para imprecisões ou variâncias em relação ao original intuído pelo filósofo numa conferência na década de 1960. Mas, no contexto das cidades, as heterotopias costumam gerar lugares pelo menos incomuns frente a políticas públicas que não atenderiam aos desejos de seus habitantes ou a espaços outros já impregnados de referências que se quer refratar. Esses lugares costumam ser formados para abrigar pessoas ou grupos sociais muito específicos que buscariam sua autodeterminação. Podem ainda assumir uma imagem irreverente ou anunciadora de rupturas portadoras do futuro. Alguns podem ser vistos nas cidades como enclaves, mas muitos rejeitam a imagem de guetos. Podem estar ou não enquadrados na lei.
Aqui são apresentados alguns exemplos desses lugares existentes em cidades e países do mundo, em contextos diversos.
Cidade dos Anões (Dwarves City), China

Se há uma lição a aprender na cidade dos anões não é encontrar um ambiente ergonomicamente planejado para as pessoas com altura menor do que 1,30m, mas, ao contrário, fazer o visitante de maior estatura entender o que significaria viver em um lugar não pensado para as suas condições físicas. Kunming, a Dwarves City construída na Província de Yunnan, no sudoeste da China, é uma solução radical de habitat próprio para os que vivem na condição discriminada de nanismo. Alguns, no entanto, se referem ao projeto como um parque temático. Próximo à cidade de Manila, nas Filipinas, a Associação de Pessoas Pequenas luta também para implantar uma colônia planejada para pessoas portadoras de nanismo.
Do Homem de Vitruvio, de Leonardo da Vinci (1490), ao Modulor, de Le Corbusier (1948 e 1957), a arquitetura esteve preocupada com a adaptação ergonométrica do ambiente construído ao homem. Mas, um homem padrão. O próprio Modulor, uma figura imaginada inicialmente com 1,75m depois reeditada com 1,83 m de altura, foi criticado na época de seu aparecimento por atender a uma estatura muito identificada com o padrão humano europeu.

De fato, esse é um debate também aberto na arquitetura quando pensada para as crianças, por exemplo, que, por experimentarem nessa condição apenas uma fase do seu processo de crescimento, não costumam participar das decisões sobre ao projeto do seu habitat.
Mas o grande desafio de Kunming talvez seja a sua própria manutenção, frente aos padrões de serviços e equipamentos oferecidos nas demais cidades do país. Mais ainda, provar que não projetou para si mesma um destino de gueto tampouco de um ponto turístico.
Het Dorp, Holanda
Het Dorp é uma vila próxima à cidade de Arnhem, na Holanda, planejada nos anos de 1960 em uma área de 44 acres, inicialmente com 400 moradias, destinadas exclusivamente a pessoas deficientes. Tudo começou com uma ousada iniciativa de arrecadação de fundos através do rádio e de uma até então inédita utilização de um programa de televisão que foi ao ar nos dias 26 e 27 de novembro de 1962. Artistas e celebridades da época apareceram no programa para apoiar e colaborar. Um engenhoso e simples mecanismo de depósito foi organizado com êxito tal que permitiu que a idéia virasse realidade.
Desde a sua fundação, Hert Dorp gera polêmica. Afinal, a integração de deficientes físicos às cidades deveria constituir um consenso e um direito universal. Ao contrario, uma solução como Hert Dorp geraria isolamento e, para alguns, um ambiente de gueto.
Christiania, Dinamarca
Recriações da Estátua da Liberdade, de Nova Iorque, formam o símbolo da chamada Cidade Livre de Christiania, criada numa antiga área militar da cidade de Copenhagen, na Dinamarca. A comunidade ocupou a área logo após os movimentos de maio de 1968. A experiência surgiu com fortes pendores anarquistas, consolidando-se como território que se propôs a fundar suas próprias leis. Aos visitantes se impuseram algumas regras internas para acesso e convívio. Caminhando para meio século de existência, Christiania abriga hoje cerca de mil moradores, recriando-se e adaptando-se a alguma ordem legal, fundiária e econômica, frente ao padrão de democracia, de direito e de mercado que se vive no país. Mas, o impulso original de vanguarda que animou o surgimento da experiência abraçou com pioneirismo temas novos, como o da sustentabilidade, e continua a projetar expectativas sobre o sentido de liberdade vivido ali.
Comunidades como Christiania surgiram muitas no mundo. Na própria Dinamarca outra experiência de menor escala serviu de argumento ao filme The Commune, lançado em 2015 pelo cineasta Thomas Vinterberg. Entre os bairros de Altona e St. Pauli, na cidade de Hamburgo, Alemanha, Flora Vermelha (Rote Flora) foi criada por um grupo de intelectuais ativistas, após a derrubada do muro de Berlim.
Jinwar – Síria

Jinwar é uma pequena vila – comunidade criada em Rojava, na Síria, como projeto de autodeterminação de um grupo de mulheres em busca de autonomia, liberdade e segurança, num contexto de extrema adversidade. A experiência busca sustentabilidade focada ao máximo nas condições internas do próprio grupo e logo passou a servir como referência para outros grupos femininos com as mesmas necessidades e perspectivas, constituindo-se em um projeto político e territorial ousado e inspirador contra o patriarcado no lugar.
Vale do Amanhecer, Brasil

O movimento doutrinário e religioso conhecido como Vale do Amanhecer se instalou no seu atual sítio em 1969, na cidade satélite de Brasília chamada Tabatinga, em terras do Governo do Distrito Federal. Apesar da pouca população, a comunidade tem características urbanas vivendo unicamente voltada para o culto fundado pela paranormal e extra sensorial Tia Neiva. As referências simbólicas, de cunho sincretista e milenar, presentes na arquitetura, nos monumentos e no vestuário dos moradores e frequentadores fazem do Vale do Amanhecer uma quase negação do que está ao seu redor. O acesso à localidade é livre ao público, mas como tudo ali gira em torno do culto, não há abertura a outras funções.
Vila ConViver, Brasil

Professores sindicalizados da Universidade de Campinas (Unicamp), em São Paulo, unidos por laços de amizade e visão comum de futuro, decidiram criar a Vila ConViver. A iniciativa visa romper um ciclo quase vicioso no qual, com a idade avançando, o destino dos mais velhos seria morar na casa dos filhos, serem colocados em instituições ou casas geriátricas e perderem sua autonomia e independência, pautados por uma atitude de vida e uma visão negativa das suas idades. Essa experiência de cohabitação e de apoio
mútuo nasceu em 2014 e constitui um caso de reação autodeterminada em busca de modelos para uma nova organização sócio territorial.
Publicado em Blog do autor em 08 de fevereiro de 2016
