Melhorar a favela ou libertar os favelados?

Foto: Projeto Morrinhos

A superexposição recente das favelas cariocas à violência fez animar o debate sobre o que temos a ver com isto. A classe média sobe o morro oferecendo afeto aos moradores, que agradecem oferecendo afeto também ao asfalto. Velhas idéias ressurgem enquanto novas tentam impor-se. O “obrismo” promete a redenção da favela, enquanto os moradores lutam por espaço na mídia para dizer o que pensam de si mesmo e o que realizam em inúmeras iniciativas de afirmação social e cultura.

As favelas surgiram na indigência e se desenvolveram como fenômenos urbanos ascendentes. Para a favela, o tempo político impôs uma expectativa de um dia se configurar e ser reconhecida como bairro, num processo lento que contrasta com o que ocorre nas áreas centrais onde a ética da destruição criadora moderniza periodicamente o que está aparentemente pronto. Tudo indica, no entanto, que superamos o discurso e a astúcia de projetos que antes pareciam se auto-legitimar, tratando a pobreza como um epifenômeno. Tomar o assunto como uma questão a ser enfrentada pelas políticas públicas implica afirmar uma ordem de valores que amplie os horizontes sociais dos mais pobres.

Num período histórico em que a água é considerada um bem estratégico global, sob ameaça de escassez, famílias que dispõem de rede de água na porta de suas casas se abastecem em fontes alternativas para escapar da conta do consumo. Fazem “gato” nas redes de energia elétrica e TV a cabo, revelando evidências da expansão relativa do consumo material nas áreas pobres sem uma correspondência com a promoção de valores de cidadania. Forjamos consumidores sem formar cidadãos. Como desmontar a geografia do tráfico na favela tendo em vista que a sua organização interna foi se adaptando ao processo de militarização dos negócios da droga no lugar? Como evitar que escolas e creches sejam impedidas de funcionar e que casas, às vezes contempladas com investimentos públicos, sejam incorporadas ao patrimônio funcional do tráfico? Todo o esforço de responder às tensões sociais tem sido insuficiente para instaurar um ambiente de maior sociabilidade e incrementar a produtividade e o desempenho das cidades.

Conjuntos residenciais, como o Cidade de Deus, construídos para abrigar populações de favelas erradicadas de áreas nobres da cidade, mostraram-se, com o tempo, lugares tão ou mais opressivos do que aqueles aos quais quiseram contrapor-se. Voltar hoje lá, depois de quatro indicações para o Oscar de um filme que lhe tomou como argumento, permite constatar como inúmeras alterações no seu projeto original refletem barreiras que haviam sido impostas às liberdades e ao processo de vida econômica e social dos seus moradores. Carlos Nelson Ferreira dos Santos chegou a pregar o exercício de uma pára-arquitetura e de uma metalinguagem para o ofício dos arquitetos nessas áreas.

O economista Amartya Sen sustenta que desenvolvimento se mede pela expansão de liberdades humanas: liberdades políticas, facilidades econômicas, oportunidades sociais, garantias de transparência e seguridade protetora. A expansão dessas liberdades tenderia a facilitar a inserção social dos mais pobres. A pobreza, para Sen, deve ser vista como privação de capacidades, em vez de baixo nível de renda. Assim não é fácil vingar a tese liberal que atribui à indolência a causa da pobreza e da imobilidade social. Por aí se oferece uma outra via em oposição à tese de crescer o bolo para depois dividir e em oposição a promessas estratégicas que revigoram os saudáveis enquanto estrebucham os enfermos.

Qualquer morador de favela espera melhorias nas suas condições de moradia, uma vez que isto pode lhe dignificar como cidadão e facilitar seus laços com a cidade. Mas já se ouviu também desses moradores que não é só obra que muda a favela. Sabem que a cidadania diz respeito não somente ao seu endereço fixo, mas também ao seu corpo móvel. Eles próprios vem apontando caminhos na sua engenhosidade econômica, expressão de cultura e articulação com os que podem lhes servir como aliados. Caberá a nós abrir flancos por onde as liberdades humanas possam se expandir, afirmar um ambiente de sociabilidade e dar sustentabilidade ao desenvolvimento.


Publicado na página de Opinião do Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, p. A-19, 20 de maio de 2004.
Publicado, em versão para o Inglês, no livro de KHOSLA, Romi & SAMUELS, Jane. Removing Unfreedoms: Citizens as Agents of Change in
Urban Development. ITDG/DFIF, UK, 2005, p. 97-98. ISBN 1-85339-606-0 (www.itdgpublishing.co.uk) (http://removingunfreedoms.org)