O avanço das boas práticas de governo em desenvolvimento local é notável em todo o Brasil e no mundo. Mesmo aquelas boas práticas não exatamente melhores ou inovadoras estão se difundindo como práticas usuais, uma vez que atendem a abordagens conceituais, metodológicas ou técnicas já testadas e aprovadas em outros contextos e outros tempos. Neste sentido, se não chegam a ser melhores práticas seriam réplicas de boas práticas pioneiras, não deixando de ser merecedoras de destaque. Vale lembrar que, por todo o mundo, sistemas de premiações costumam apoiar-se em categorias distintas de “melhores práticas” e de “transferências de melhores práticas”.
O destino de toda boa prática, uma vez consagrada e difundida, seria inspirar a sua própria superação como tal, por suas réplicas ou seus avatares, gerando então “velhas novidades”, quem sabe, aperfeiçoadas ou melhoradas em relação às suas próprias matrizes. Afinal, o espírito da transferência do conhecimento é o que deveria animar as premiações pelo mundo, mais do que os próprios prêmios.
A questão então é saber qual o corte político, conceitual, técnico ou metodológico que define, no tempo e no espaço, a transição de uma prática da condição de melhor prática para uma boa réplica ou prática usual. Na medida em que uma prática inovadora cai no domínio público tende a ser assimilada como prática comum, perdendo a referência original de “melhor”. O desafio de avaliação das práticas, portanto, é de contexto, não somente no tempo, mas também no espaço. Afinal, uma prática já consagrada em um lugar poderá ser replicada como inovadora no contexto de outro lugar. Diante de uma agenda global que busca afirmar valores universais e direitos individuais e coletivos para todos os cidadãos, o repertório de critérios de avaliação e de premiação tem se unificado em torno de bandeiras já conhecidas dos que militam no tema: universalidade, sustentabilidade, promoção da dignidade humana, afirmação de espaços políticos democráticos, etc.
Para além de critérios, práticas verdadeiramente portadoras de inovação acabariam por não se enquadrarem facilmente em muitos requisitos que buscassem instruir ou fundamentar as suas próprias avaliações. Essas práticas poderiam se destacar mais pela mudança de paradigmas, que oferecessem novas mediações às futuras políticas públicas, do que pela sua resolução e implementação impecável como solução concreta para demandas da sociedade. Poderiam assim, no processo de sua construção e implementação, se destacar mais por um caráter experimental ou exploratório do que pela sua completude como caminho acabado para as políticas públicas, merecendo por isso ação de reinvestimento em busca da amplificação dos seus impactos.
Outra questão conceitual importante para examinar a proposta geral das premiações e os critérios de enquadramento e avaliação das práticas pelos organizadores diz respeito ao conceito de “gestão local”, expressão que inclusive nomeia alguns desses prêmios. Há prêmios para práticas de gestão local, mas o que é mesmo o local? A que escala ou contexto geográfico se refere? Seria a escala da gestão pública mais próxima do cidadão em um dado contexto? Ou, numa acepção mais objetiva, apenas o território de incidência da experiência, não importando a sua escala e cobertura de unidades político-administrativas do País? De fato, têm sido levantadas questões quanto ao sentido do local em algumas práticas. Algumas, por exemplo, envolvem territórios de mais de uma cidade ou município, mas a iniciativa é só de um deles (em geral o de maior evidência). Quando muito, há um sócio regional ou nacional com atuação no tema do projeto que garante a ação em um território que vai além da jurisdição do município que assumiu a iniciativa, mas não se articulou com os demais. Há também exemplos de projetos realizados em bacias hidrográficas ou em regiões metropolitanas nas quais todos os municípios são anunciados como beneficiados, mas com a participação ativa de apenas um deles, quase sempre o mais beneficiado.
Vale registrar que mesmo esses projetos não deixam de ser relevantes como práticas geradoras de benefícios para a sociedade em geral, mas não respondem à expectativa de cooperação horizontal e vertical entre as esferas de governo, dentro do melhor espírito federativo (como no caso brasileiro) onde se inscreva o “local”. Mesmo diante do argumento de dificuldades de compreensão de fronteiras de competências comuns, concorrentes ou complementares que persistem entre os entes de governo, restariam as vontades políticas genuínas de cooperação a serem invocadas. Neste sentido, essas práticas poderiam estar privilegiando mais um ativismo de iniciativa do que um ativismo baseado na ação conjunta dos entes implicados no território da ação. O recurso aos consórcios (horizontais, somente entre municípios, ou verticais, quando envolvem outras esferas de governo) abriria possibilidades de institucionalização de práticas de cooperação capazes de potenciarem vontades e interesses comuns. Quem sabe mesmo, isto poderia constituir um critério talvez mais avançado do que o critério de “parceria” frequentemente utilizado nas premiações e, no nosso entendimento, equivocadamente associado às relações intergovernamentais. Afinal, diante do interesse público não se trata de aderir a uma parceria, mas de cumprir uma missão federativa de Estado.
Outra questão a considerar, relacionada diretamente à anterior, é que a premiação é dirigida a práticas, mas, ao fim e ao cabo, premia os protagonistas responsáveis pelas práticas, via de regra as lideranças políticas do processo a quem as práticas terão suas imagens públicas associadas. Isto exige atenção sobre a identificação correta e os papéis de atores envolvidos nas diversas etapas e componentes de cada projeto. Outra preocupação é quando se premia um único componente de uma prática sem considerar a qualidade do conjunto do projeto. A preocupação seria a premiação estar agregando o sucesso de um componente a outros componentes não submetidos ao mesmo processo de avaliação.
De todo modo, muitos sistemas de premiação de melhores práticas têm buscado sublinhar valores ligados à promoção da dignidade humana e à criação de espaços saudáveis de vida. Projetos com diversos componentes temáticos têm sido capazes de gerar impactos combinados na melhoria dos meios de vida da população. Mesmo projetos com foco em intervenções físicas ou em melhorias da materialidade dos espaços de vida (habitação, infraestrutura) vêm agregando investimentos diretos em cidadãos e cidadãs. Vistas por outro lado, para além dos seus propósitos anunciados, muitas dessas práticas são portadoras de metalinguagens, incidindo sobre outros domínios da existência humana também geradores de externalidades positivas no bem viver.
Os sistemas de premiações parecem estar hoje diante de um doce desafio, pois é comum encontrar como requisito recomendável ou de bom credenciamento às práticas candidatas o registro de outra premiação prévia dessa prática em outro sistema. Afinal, a multiplicação dessas premiações não tenderia a anular a excepcionalidade dos prêmios? Enquanto algumas se consolidam como espaços institucionalizados de identificação, seleção, avaliação, premiação e difusão de práticas de gestão pública, outras parecem ter esgotado a fórmula. Ao longo das últimas décadas, os esforços pioneiros no tema aliados à disponibilidade crescente de tecnologias de informática, facilitando o acesso em rede à informação, encontram na firme iniciativa de instituições, países e fóruns a acolhida de agentes qualificados e com capacidade de articulação, mobilização e financiamento. Isso permitiu estruturar e amplificar a gestão do conhecimento gerado sobre práticas de desenvolvimento.
O caminho atávico da expansão da democracia e das liberdades no mundo constitui um fator inexorável da emergência de melhores práticas de governo como respostas a demandas genuínas da sociedade. Isso é o que pode favorecer a experimentação, a livre circulação de idéias, a participação da sociedade na formulação e implementação dos projetos e na própria avaliação de desempenho das práticas junto aos seus reais beneficiários diretos e indiretos em cada contexto.
Finalmente, o mínimo que se pode esperar de quem promove uma premiação é que pratique o que prega, atendendo nas suas próprias práticas e rotinas institucionais aos valores e requisitos que adotou ou elegeu para enquadrar, acolher como candidata, premiar e difundir as práticas inscritas.
Publicado em 09 de julho de 2014.
