O que esperar na Sustentópolis?

O tema há muito entrou para a ordem do dia e ocupa os noticiários. Parece projetar expectativas sobre o futuro da condição humana no planeta (e talvez do próprio planeta). Nossa crença é que as idéias de força desse caminho nos levariam a um novo padrão civilizatório ou, pelo menos, a uma nova cidade, diferente dessas que conhecemos hoje.

Desde os documentos preparatórios da conferência mundial conhecida como Rio 92, e mesmo frente a um pesado passivo de difícil superação, a sustentabilidade se tornou um forte pressuposto dessa mudança. Sustentabilidade, para alguns, é traduzida também como durabilidade, associando-se o conceito à perenidade qualitativa dos meios de vida no tempo. Depois de mais de dois séculos duramente predadores, alimentados, sobretudo, pela industrialização e a urbanização, o conceito teria surgido para realinhar o modo de produzir, consumir e viver no planeta, projetando para o futuro uma simbiose mais generosa entre o meio natural, os meios de produzir e a espécie humana. Nas cidades se projetaram grandes esperanças sobre esse mundo novo que anima o nosso imaginário e o nosso engajamento para a mudança. O que esperar então na Sustentópolis?

O repertório de temas implicados na sustentabilidade é extenso. Partindo do meio natural, foram pautados na agenda da sustentabilidade a água, a atmosfera, o solo e a biodiversidade (flora e fauna). O ambiente construído, como diria o geógrafo Milton Santos, formado pelas nossas próteses no exercício de funções produtivas no território, antes um agente predador, agora é pensado como um aliado que deveria estar em simbiose com o meio natural. Os combustíveis fósseis, que sustentaram os ciclos de industrialização e urbanização, demorarão a ser substituídos pelas energias renováveis, dado o gigantesco investimento que geraram em capital fixo no seu ciclo de produção e consumo. Em outra vertente, a mudança do clima expõe patrimônio e populações vulneráveis a riscos cada vez maiores.

Nas cidades, se antes cada sistema urbano era pensado isoladamente, agora tendem a ser submetidos à circularidade. Água pluvial, por exemplo, pode alimentar o abastecimento humano e resíduos podem gerar outros produtos e energia. Homens e mulheres são os agentes antrópicos desses fenômenos que, com os recursos cada vez mais decisivos da tecnologia, podem determinar o nosso padrão de incidência sobre o que já vem sendo chamado o antropoceno. Mas, continuará o combate de projetos e de idéias dos múltiplos atores em jogo. Os governos afinam suas políticas públicas, em busca de uma mudança de valores, princípios, mecanismos de gestão pública e relação com os setores produtivos e a sociedade. Muitas cidades pelo mundo põem em marcha novas idéias, materiais e componentes para as infraestruturas e os sistemas urbanos. Bairros inteiros estão sendo construídos já sob os cânones da sustentabilidade.

Mas, olhando para trás, quando o assunto sequer estava em pauta, pelo menos como tema de acordos internacionais e questão de política pública, é preciso registrar que as primeiras lições de sustentabilidade foram dadas pelos pobres. Coletavam água de chuva, utilizavam materiais alternativos e sem valor de mercado para construírem suas casas, consumiam pouco e reciclavam refugos do pouco que consumiam e do muito que outros também. Assumiam assim a iniciativa pioneira de por em prática os três erres do reuso, da reutilização e da reciclagem que hoje alimentam a próspera indústria da logística reversa. Aqueles pobres, estigmatizados, mas proto-sustentáveis, contribuíam sem saber com o planeta. Suas pegadas ecológicas eram decorrentes da quase ausência do Estado em suas vidas. Antes notabilizados nos velhos lixões, buscam hoje um novo lugar na ordem produtiva da sustentabilidade global.

Um estudo da Oxfam* trouxe ao debate dados contundentes sobre os extremos da desigualdade econômica e social no mundo. Segundo esse estudo, o 1% mais rico da população mundial detém atualmente mais riquezas do que todos os 99% restantes da população mundial. Apenas 62 pessoas detêm a mesma riqueza que 3,6 bilhões de pessoas, que corresponde à metade mais afetada pela pobreza no mundo. Outros números são igualmente estarrecedores, revelando níveis de desigualdade, segundo o estudo, não registrados há mais de um século. De fato, a exacerbação da primazia do capital sobre o trabalho e a proteção de um volume de recursos da ordem de US$ 7,6 trilhões em paraísos fiscais a salvo de qualquer tributação minimamente redistributiva, tornam a desigualdade um fator de insustentabilidade global irremediável.

Mas, esse estudo da Oxfam vai mais além dos números, tratando de confrontá-los com a exposição das populações inclusive à mudança do clima. Segundo o estudo, os mais vulneráveis são os que menos produzem emissões globais de gases de efeito estufa. E é fácil entender por que.

O caminho da insustentabilidade também pode ser observado na intensificação das migrações internacionais que, afinal, desde os nomadismos milenares formam o mundo. Países receptores dessas migrações se veem chamados à solidariedade humana enquanto veem se multiplicar, de forma instantânea, pressões sobre as suas próprias condições de sustentabilidade. O aprendizado nesse processo é que o problema dessas grandes migrações contemporâneas está mais na origem do que no destino. Mas, como resolver isso nas arenas e territórios da diplomacia e da geopolítica nos quais muitos daqueles países receptores das migrações poderiam ser decisivos?

De todo modo, os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), aprovados no âmbito das Nações Unidas no final de 2015, projetam a sua incorporação progressiva nas políticas públicas. E a Organização Internacional para a Normatização (ISO) já mantém um sistema de indicadores para avaliar o desempenho e o enquadramento das cidades em padrões desejáveis de sustentabilidade.

A sustentabilidade constitui-se em um mito necessário. Jamais chegará a atingir a virtuosidade de seus princípios. Mas, tê-la como pressuposto e como meta nos ajudará a compreender e construir novos modos de produzir o planeta. A questão, uma vez mais, é saber quem, de fato, será um cidadão e o que restará aos proto-sustentáveis na Sustentópolis.


* Uma Economia para o 1%. Documento Informativo Oxfam 210, Resumo. Oxfam GB, Oxfam House, John Smith Drive, Cowley, Oxford, OX4 2JY, UK, Jan. 2016. ISBN 978-1-78077-993-5.

http://www.oxfam.org.br/sites/default/files/arquivos/Informe%20Oxfam%20210%20-%20A%20Economia%20para%20o%20um%20por%20cento%20-%20Janeiro%202016%20-%20Resumo.pdf

Publicado em Blog do autor em 13 de fevereiro de 2016