O Urbanismo diante do espelho

A imagem sugerida pelo título deste artigo é um tanto óbvia diante do apelo cabalístico da virada próxima do século e do milênio. No entanto é difícil neste momento escapar da revisão de identidade de um campo disciplinar e profissional que teve sua gênese justo no início do Século XX e viu alguns de seus dogmas e, para alguns, mesmo sua própria existência desafiados bem antes do fim do século, pelo menos nos moldes em que o urbanismo se afirmou como tal. A crise de identidade se, por um lado, refletiu o fim do exibicionismo formalista, por outro lado não logrou apontar um perfil muito bem definido para o novo profissional que veio surgindo nestas últimas décadas.

De 27 a 30 de novembro deste ano de 2000 os urbanistas ibero-americanos têm um encontro marcado na cidade do Recife, no Brasil. Será uma oportunidade privilegiada para voltar a refletir sobre o tema. Quiseram os organizadores ibéricos dar destaque a esse novo evento de uma série de congressos ibero-americanos bienais de urbanismo, que chega à sua nona edição, realizando-o no Brasil. A escolha do país é exemplar. Na América descoberta pelos ibéricos e que inspirou a ideia de utopia no início do século XVI, o Brasil, até a chegada dos portugueses em 1500, não conhecia cidade nem tampouco administração urbana. A partir de então o país experimentou em seu território um processo tão rápido quanto radical de desenvolvimento de uma sociedade urbana, se comparado com suas matrizes europeias.

No século XIX, a industrialização fez se desenvolver com vigor os ideais e modelos de cidades. A expressão urbanismo, conforme registrou Françoise Choay, somente apareceu em 1910, vale dizer, em um trabalho de um geógrafo, mas justamente quando entraram em cena os arquitetos como desenhadores de cidades. Antes disso haviam se destacado no projeto da cidade, por exemplo, engenheiros militares preocupados com a defesa, médicos sanitaristas preocupados com a saúde e artistas dedicados, sobretudo, a grandes programas e cenários construídos.

A trajetória espetacular do urbanismo ao longo das décadas foi submetida a uma critica atenta, até mesmo pelo fato de suas realizações serem públicas e interessarem a todos os cidadãos. As glórias, muitas das vezes, foram contemporâneas dos próprios projetos e de inaugurações públicas oficiais. Os fracassos muitas das vezes só puderam se revelar com o tempo, com o atenuante do urbanismo ter dificuldades de avaliar seus resultados a priori. Muitos dos fatos que cria ou processos sociais que desencadeia tendem a adquirir uma certa persistência no tempo, produzindo efeitos continuados na vida dos lugares.

Enquanto se construíam gerações de cidades novas em lugares novos, nas cidades existentes se difundiam realizações luminosas. Nestas cidades, no entanto piorava a qualidade de vida em muitos bairros e se expandiam as periferias e áreas pobres urbanas. Demorou para que urbanistas pioneiros assumissem esses temas como dignos da profissão e portanto exigindo, mais do que discursos, ação prática. Por essa via começou a renovação.

Continuam vivas as inquietantes indagações, feitas na década de 70 por Vittorio Gregotti, em seu magistral livro intitulado Território da Arquitetura, acerca da identidade e das transformações desse campo disciplinar fascinante e visceralmente comprometido com a construção das cidades. Se sua tarefa não é de natureza sociológica, antropológica ou mesmo econômica, compromete-o com os impactos de sua ação nos meios urbanos onde exerce seu ofício. Mais do que isso, tem que se dedicar à compreensão dos fenômenos que, para além de sua tarefa profissional, contribuem para fazerem das cidades aquilo que são ou podem ser.

Esse profissional que se ocupa de utilizar seu saber para a construção das cidades é hoje um híbrido. Antes de tudo seu desafio é de síntese. O período atual de reconstrução do urbanismo é fértil. Tudo indica que avançamos não pela negação, mas pela acumulação de papéis ou quiçá, melhor do que isso, pelo aperfeiçoamento do diálogo epistemológico com outros saberes e com os próprios cidadãos a quem dirigimos nosso ofício.

Velhas temáticas voltam renovadas à agenda da sociedade civil, dos governantes e dos urbanistas. O tema ambiental veio de vez para ficar. A cidade, que foi se constituindo na negação da natureza, hoje se vê desafiada a renaturalizar-se como recurso desesperado de salvação. Essa bandeira das novas utopias foi levantada pelos ambientalistas, pioneiros de um tema que, por instinto de sobrevivência humana, agora mobiliza a todos. Os urbanistas são dos que mais tem se engajado nesta reversão de expectativas, em busca do tempo perdido. A própria cidade do Recife, também foi sede, há um ano atrás, da terceira Conferência das Partes da Convenção das Nações Unidas de Combate à Desertificação. Trata-se de um esforço planetário para reverter a tendência de exaustão das fontes de água do planeta. A atenção recai tanto sobre zonas críticas para a produção agrícola quanto sobre grandes aglomerações humanas. A cidade de São Paulo vive hoje o drama do permanente racionamento de água. O tamanho, a intensidade da urbanização e as formas de uso e ocupação do solo desta que é das maiores metrópoles do mundo levaram ao limite as fontes de água viáveis para seu abastecimento.

Acentuam-se também os sinais de que a economia mundial não superará a pobreza estrutural nem tampouco salvará os pobres do planeta. Junto com as grandes operações logísticas que visam melhorar a competitividade dos setores modernos da economia, uma nova economia está sendo buscada para enfrentar a pobreza urbana. Desenvolveram-se bancos populares, mecanismos de microcrédito, projetos de renda mínima (ou imposto de renda negativo) e políticas tributárias com forte caráter social.

As formas antigas de governo das cidades também estão postas a prova. O esforço de afirmação da democracia na América Latina e o ajuste nas funções do Estado vêm exigindo mudanças profundas neste aspecto. Estamos desafiados a mostrar que somos capazes também de realizar planejamento fora dos períodos ditatoriais.

Os economistas há muito fazem suas contas, preocupados com a competitividade e a viabilidade dos negócios nas cidades. Por outro lado surgem rankings de cidades boas para negócios, onde a qualidade de vida está em destaque, com forte apelo ao trabalho dos urbanistas.

O protagonismo vigoroso das cidades nesta virada do milênio nos convoca ao mesmo tempo à ousadia e ao engajamento a um ideário transformador que vá além dos discursos formalistas. A busca de um novo sentido para o nosso ofício tem acompanhado a busca de um novo sentido para as próprias cidades como lugares de realização das felicidades coletivas humanas. Não são poucos os arquitetos e urbanistas que nas últimas décadas do século 20 se tornaram Prefeitos de importantes cidades latino-americanas. Fizeram na verdade uma passagem do discurso a uma das formas de prática, cansados talvez do front das matérias de jornais e dos artigos cultos em revistas especializadas e anais de congressos. Suas funções de Prefeito também lhes garantem duas coisas: escapar do projeto pontual e trabalhar com o processo urbano, não mais em partes da cidade, mas, no conjunto dela. Assumiram a limitação do seu ofício original e foram em busca de um espaço de ação política onde as formas de desenhar as cidades são apenas auxiliares e coadjuvantes, apesar de não menos comprometidas.

A imagem atual dos urbanistas refletida no espelho talvez não tenha o apelo de identidade que tinha em meados do século 20, mas pode hoje interessar muito mais aos cidadãos comuns das cidades. Diante de uma agenda tão ampla, se conseguirem escapar da tentação demiúrgica que, em nome da complexidade temática do seu saber, costuma elevá-los aos céus como salvadores ou missionários, estarão muito mais aptos a contribuir para a construção de melhores lugares para realização da vida humana.


 

Publicado na revista CONTACTAR, Buenos Aires, Argentina, 2000, Ano II, nº 5, p. 36-37.
http://usuarios.advance.com.ar/contactar/0500.htm
Publicado na Gazeta Mercantil, com o título O Urbanismo Contemporâneo, Caderno de Cultura, 19/10/2000, p. 3.