Um relógio mole espreita o Rio

desenho do autor
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Nunca se falou tanto do futuro. E isto coincide com a aceleração do tempo histórico e o aumento vertiginoso das incertezas sobre o futuro. Os cenários vão dos mais previsíveis e racionais aos mais improváveis e apocalípticos. Nisto incluem-se temas como as pressões sobre o meio ambiente e a mudança do clima, a questão energética, pesquisa e apropriação de novas tecnologias, domínio da comunicação, ordem financeira mundial, ordem geopolítica internacional, organização do Estado, papel das cidades, acesso dos cidadãos a direitos universais e formação ética e filosófica do homem. O cinema exibe cada vez mais filmes novos sobre o futuro. Mas, parece haver pouca crença em misticismos e profecias que animam a imaginação e o assombro humano sobre o porvir. A busca é por um enfrentamento mais racional do futuro.

Um olhar atento revela a enorme profusão de instituições, centros de estudos e pesquisas, universidades, unidades de governo, organizações think tank e núcleos de grandes empresas dedicados aos mais diversos temas relacionados à previsão e à construção do futuro. Alguns profissionais foram de vez para a berlinda. Gurus do mundo dos negócios recomendam onde apostar nossas fichas. Governos afirmam o otimismo. Intelectuais justificam o pessimismo. Sociedades secretas conspiram para impor valores e interesses. No dia a dia, sem controle da roda viva, os cidadãos intuem suas estratégias mais imediatas de sobrevivência. Quando levados ao limite, formam a turba urbana que sacode submissões às vezes tidas como eternas e inquestionáveis.

As cidades figuram como plataformas incandescentes e protagonistas privilegiadas dessas expectativas. Planos estratégicos recomendam assumirem o lugar de antenas receptoras e propagadoras da inovação, que já foi de Bruges, Veneza, Antuérpia, Gênova, Amsterdã, Londres, Boston, Nova Iorque e hoje parece ser de Los Angeles.

O Brasil é apontado como País que experimenta a sua démarrage ou o seu take off, como sugere a teoria do desenvolvimento, mas com a herança de uma sociedade e de um território profundamente heterogêneos, desiguais e assimétricos. O Rio de Janeiro é o epicentro da mobilização do entusiasmo nacional. Não bastasse todo o capital competitivo já acumulado pela ex-capital do País, o petróleo revelou extraordinárias reservas na costa fluminense, ampliando o potencial de receitas e as exigências de investimentos dos royalties na prevenção dos seus impactos. Em junho deste ano, na Conferencia Rio+20, mais uma vez a cidade irá sediar um encontro mundial sobre o meio ambiente. Além da Copa do Mundo de 2014, será sede das Olimpíadas e Para-Olimpíadas de 2016, competições inéditas na América do Sul. O carioca renovará o seu desprendimento cosmopolita, sob a afirmação genuína da sua identidade. Centenas de bilhões de dólares estão sendo investidos na cidade. O próximo Prefeito ou Prefeita do Rio terá megaeventos como vitrine de ampla visibilidade internacional, menos pelo que já se fez e mais pelo que ainda se espera que faça na construção do futuro da cidade, sem ilusões fáceis com este momento da cidade, do País e do mundo. Afinal, Atenas, na Grécia, criadora e última sede das Olimpíadas, parece hoje provar que um megaevento, por si só, não é capaz de salvar uma cidade e um País do seu contexto.

Pelo mundo, cidades importantes que consolidaram museus sobre suas histórias implementam planos para 2050. O Rio tanto investe em arqueologia urbana quanto constrói com entusiasmo o projeto do arquiteto espanhol Calatrava para o Museu do Amanhã, nome paradoxal que sugere abrigar o conhecimento sobre um futuro ainda em gestação. Melhor se amanhã se referisse a amanhã mesmo e não a um futuro longínquo que continuasse a empurrar nossa agenda e nossa desfaçatez para um compromisso vago no tempo. Se na ficção científica o imaginário sobre o futuro costuma se inspirar nas tecnologias, nesse tema o Rio assume vanguarda em algumas frentes, com a participação decisiva da pesquisa universitária e empresarial. Mas dependerá de um projeto social e de educação revolucionário que garanta respostas dos nascidos hoje às exigências do amanhã.

A geografia do Rio terá que aderir a padrões urbanísticos e ambientais que valorizem a sua imagem. A vida urbana terá que aderir a padrões culturais e de sociabilidade que valorizem a cidadania. O bairro de Santa Teresa, uma emergência heterotópica, constitui um movimento de resistência e inovação em relação a padrões culturais, comunitários e de oferta de serviços verificados no resto da cidade. A pacificação das favelas e a assunção do papel do Estado nessas ribanceiras liberam a energia produtiva que esteve represada no século passado. Iniciativas culturais brotam nas favelas afirmando talentos no teatro, na música, na dança e iniciativa pioneira de construção do Museu da (favela da) Maré, já no roteiro de visitas internacionais. Mas é também nas favelas que a Defesa Civil terá que mostrar o seu melhor desempenho preventivo, diante do aumento dos fatores de risco nas temporadas de chuvas. Como cidade costeira, diante da mudança do clima o Rio terá que adaptar praias, baía, baixadas litorâneas e sistemas lagunares vulneráveis ao aumento esperado do nível do mar para o final deste século, fenômeno que, em países mais vulneráveis, como a Holanda, já motivou a adoção de medidas radicais dos governos.

A área portuária do Rio, finalmente, é revitalizada. Mas, o próprio porto terá que encontrar um melhor lugar na logística e no mapa mundial das rotas comerciais, que hoje privilegiam o Atlântico Norte e o Pacífico. No âmbito dos transportes, a transformação radical que temos que fazer é nas condições de mobilidade da população, superando-se imposições da geografia física e da estruturação urbana do Rio de Janeiro. A produtividade da cidade depende da pluralidade e da conectividade intermodal de barcas, trens, metro, ônibus e transportes leves (bicicletas, teleféricos, planos inclinados ou o bonde de Santa Teresa). Quando as linhas de trem virarem metrôs subterrâneos se abrirá uma extraordinária oportunidade de valorização e integração urbanística dos subúrbios hoje partidos pela ferrovia. Para além dos limites político-administrativos do município, a cidade terá também que se integrar a um projeto metropolitano que vá além do acolhimento efêmero das escolas de samba sediadas nos municípios vizinhos para a apoteose esfuziante do Carnaval.

Como na cidade de Fedora, do universo fantástico de Ítalo Calvino, antigos projetos formulados para a cidade dariam para formar um Museu do Passado do Futuro do Rio de Janeiro, expondo ao carioca maravilhas urbanísticas intuídas e jamais implantadas na cidade maravilhosa. Pensar sobre o que poderíamos ter sido pode animar o debate sobre o que devemos ser, como um exercício saudável de imaginação sobre a geografia ausente do Rio. Alberto Ribeiro Lamego havia nos alertado para a erosão do morro Pão de Açúcar sob a ação lenta do sol, do vento e da chuva em tempo geológico. Mas, isto não será amanhã. Até lá, um enorme relógio mole nos espreitará derramado sobre os cabos do famoso teleférico.

Publicado na seção de Opinião do “Jornal do Commercio”, Rio de Janeiro, 15 de fevereiro de 2012.
Publicado na revista digital Café de las Ciudades, Buenos Aires, Ano 11, nº 113, março de 2012.